Era uma vez uma festa de aniversário. A sala estava cheia de balões, doces e crianças correndo de um lado para o outro, cada uma vivendo a alegria da infância. No meio da algazarra, uma tia bem-intencionada se aproxima de um menino de cinco anos, aponta para uma coleguinha e pergunta: “É sua namorada?”. Todos riem, achando graça, enquanto o menino, sem entender muito bem, balbucia algo entre risos nervosos.
Esse tipo de cena, tão comum e aparentemente inofensiva, revela uma questão séria: a naturalização precoce de comportamentos adultos no universo infantil. Quando dizemos que “criança não namora, nem de brincadeira”, estamos afirmando o óbvio — ou, pelo menos, aquilo que deveria ser óbvio. Criança é criança. E ser criança é brincar, explorar, rir à toa e viver sem o peso de rótulos ou expectativas que não cabem em suas mãos pequeninas.
Ao romantizar gestos como dar as mãos, trocar olhares ou dividir brinquedos, acabamos tirando deles o que há de mais genuíno: a simplicidade do afeto. Uma criança não vê amor como os adultos veem. Para ela, amor é amizade, é compartilhar um biscoito, é abraçar alguém porque é bom abraçar. Ao apressar essa percepção, colocamos filtros e molduras em algo que deveria ser livre.
Além disso, há outra camada ainda mais preocupante: a perpetuação de estereótipos de gênero e relações de posse. Frases como “Ah, ele é ciumento!” ou “Ela já sabe o que quer” reforçam ideias que, mais tarde, podem se traduzir em relacionamentos desiguais, abusivos ou limitadores. Quando uma criança ouve que “tem” um namorado ou namorada, mesmo sem entender, aprende a associar isso a uma validação de quem ela é. E a infância não deveria carregar esse fardo.
Deixar que as crianças sejam crianças é protegê-las da pressa da vida adulta, das cobranças sociais e dos modelos que insistem em moldá-las antes do tempo. É permitir que descubram o mundo no ritmo delas, com curiosidade e leveza, sem a obrigação de serem ou sentirem algo que ainda não sabem nem o que significa.
Talvez, na próxima festa de aniversário, em vez de perguntar quem é o “namorado” ou a “namorada”, possamos nos ajoelhar ao lado delas e perguntar: “Qual é o seu brinquedo preferido hoje?”. Porque no mundo infantil, é disso que o coração se alimenta: de brincadeiras, descobertas e liberdade.
Criança não namora. Nem de brincadeira. Porque o amor verdadeiro que elas precisam é o da infância bem vivida, sem pressa e cheia de cor.
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