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BLOGS E COLUNAS

O enterro de um amigo que tinha asas

07/01/2021 16h33

Era uma tarde quente de verão igual a muitas outras vividas na minha infância. Eu e minha prima Rosi estávamos no quintal da casa dos pais dela, em Urussanga. Conversávamos sobre coisas inúteis, novas brincadeiras, bolos de chocolate...


- Quero te mostrar uma brincadeira bem legal - disse ela. 


Rosi então se afastou devagarinho, pegou uma pedrinha do chão e jogou em mim. Em seguida, pegou mais duas pedrinhas e me acertou outra vez. Achei a brincadeira desaforada e sem propósito, e antes que ela me acertasse pela terceira vez, entrei em ação. Peguei um punhado de pedrinhas e fiquei preparado para o ataque. 


Mas Rosi era garota esperta, percebeu o iminente revide e correu para se proteger. Fui mais rápido! Acertei suas costas antes que ela encontrasse um local seguro. Um grito de dor foi ouvido pelos adultos que conversavam dentro de casa - inclusive minha mãe -, o que despertou em mim um arrependimento instantâneo.


"Puta merda, pensei, agora é só uma questão de tempo para eu levar uma camaçada de pau".


Envergonhado, sentei na varanda e consegui ouvir Rosi chorando. Pouco depois, minha mãe me chamou com sua tradicional frase: "Passa pra dentro!". E isso era um mau sinal, pois as lembranças de experiências anteriores me diziam que esse chamamento sempre antecedia o pior.


Fui ao encontro dela psicologicamente preparado para levar aquela surra padrão anos 80, procedimento corretivo que à época era comum os pais aplicarem nos filhos que cometiam deslizes de conduta. 


Entrei na casa com a cabeça baixa e em silêncio, tentando demonstrar arrependimento. É claro que isso não redimia minha impensada ação, mas certamente despertava a piedade. Assim, quem sabe, minha mãe diminuía a intensidade e o número de cintadas que pretendia aplicar no meu traseiro ossudo. 


Quando levantei os olhos, a primeira coisa que vi foi uma marca de sangue seco no braço de Rosi. Então fiquei ainda mais apreensivo, pois eu não queria ter machucado minha prima daquele jeito. A verdade é que não havia argumentação que eu pudesse usar em minha defesa, o ferimento aberto evidenciava minha cruel e inexplicável covardia. 


O alívio só veio quando tia Dezalda - mãe de Rosi - desfez a farsa. "É tudo uma brincadeira, disse ela, a Rosi não está machucada!".


Num passe de mágica, o choro falso de Rosi virou riso verdadeiro e espontâneo. A malvada havia simulado o ferimento esfregando no braço uma flor vermelha chamada crista de galo, e ainda aperfeiçoou a farsa acrescentando mercúrio para aparentar sangue. 


Fui feito de bobo, mas eu estava no lucro. Então, um sorriso de alívio brotou em meu rosto. Mas minha mãe tratou de desfazer meu riso ao alertar com severidade o quanto é errado jogar pedras nas pessoas. 


Por fim, tudo resolvido! Rosi não ficou ressentida por receber as pedradas. Eu também não levei a sério sua interpretação dramática. Então voltamos à rotina normal de crianças e fomos brincar no pomar, lugar onde havia muitas espécies de flores - inclusive cristas de galo - e alguns pés de fruta.


E no chão, à sombra de uma laranjeira, encontramos um filhote de passarinho caído do ninho. Era visível que ele havia acabado de deixar a casca, e o mundo já lhe causava sofrimento em forma de formigas a picar seu corpo despenado! Segurei a avezinha e espantamos as carniceiras. Depois, colocamos água no biquinho e catamos uma minhoca para alimentá-lo. 


Queríamos deixá-lo forte antes de devolve-lo ao aconchego do ninho, aos cuidados da mamãe. Mas nosso esforço e boa intenção não foram suficientes para manter acesa a luz de sua recente existência. De repente, última respiração, corpo frio. A vida daquele filhotinho findou em minhas mãos! 


Eu e Rosi ficamos com o coração partido e choramos a perda. E agora, o que fazer com o corpo? E foi naquele instante que a imaginação de Rosi se destacou. "Vamos realizar um enterro digno." disse ela. Preparamos um caixão com recortes de papelão. Colocamos o corpinho dentro. Lacramos com fita adesiva e desenhamos uma cruz na face superior.


Em clima de luto, muita tristeza e cânticos religiosos, fizemos o cortejo fúnebre até a beira de um riacho de margens arborizadas, um belo lugar onde os pássaros voavam e cantavam livremente. Sem dúvida, o melhor lugar do mundo para sepultar um passarinho que não viveu tempo suficiente para aprender o ofício dos pássaros.


Cavei um pequeno buraco e baixei o caixão. Depois, rezamos todas as orações que conhecíamos. O rosário inteiro, talvez. Aterramos a sepultura. Marcamos o local com uma cruz feita com dois galhos secos amarrados. Cobrimos o solo - agora sagrado - com várias pedrinhas semelhantes àquelas que havíamos jogado um no outro. 


Já estava anoitecendo quando fomos embora. Combinamos voltar na semana seguinte, para realizar o ritual de sétimo dia. Porém, dois dias depois, retornei a Tubarão com meus pais e nunca mais visitei a última morada do nosso amiguinho. 


A noite de lua minguante ocupou o lugar do último pôr do sol da breve vida daquele indefeso filhotinho. Foi-se a luz, mas o calor daquela tarde quente de verão ainda aquece minhas lembranças e o meu coração.


Um dia inesquecível! 



MACIEL BROGNOLI
Crônicas e contos
Maciel Brognoli é guarda municipal de Tubarão, graduado em Administração Pública, especialista em Segurança Pública e Gestão de Trânsito e escritor. Ocupa a cadeira n° 27 da Academia Tubaronense de Letras (Acatul) e escreveu quatro livros.
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