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BRASIL
08/03/2021 09h30

Em ano de aumento da violência contra mulher, Damares usa apenas 1/4 do orçamento disponível

Levantamento feito pela reportagem de CELINA em colaboração com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) mostra que nem mesmo recursos extraordinários liberados em função da pandemia mudaram o panorama

No ano em que o país registrou uma denúncia de violência contra a mulher a cada cinco minutos, o gasto com ações de proteção à mulher feito pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) em 2020 foi o menor dos últimos dez anos. Levantamento feito pela reportagem de Celina em colaboração com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) mostra que a pasta comandada por Damares Alves só pagou 24,6% do total de R$ 120,8 milhões autorizados pelo Congresso para este fim em 2020. No ano em que a pandemia contribuiu para aumentar os casos de violência contra a mulher, a execução financeira para a área somou apenas R$ 35,5 milhões.

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Os dados foram obtidos por meio do Siga Brasil, sistema de informações sobre o orçamento público federal mantido pelo Senado, analisados usando o conceito de execução financeira,  que corresponde ao valor efetivamente pago somado aos restos a pagar de anos anteriores quitados no ano em análise. Desta forma, foi possível identificar quanto de fato chegou no serviço na ponta, onde a mulher é atendida.

Do orçamento de R$ 120,8 milhões autorizado pelo Congresso em 2020, o MMFDH empenhou R$ 117,7 milhões para ações de combate à violência contra a mulher, o maior valor desde 2015. Mas pagou apenas R$ 29,7 milhões, somados a R$ 5,8 milhões de restos a pagar de anos anteriores.

Questionado pela reportagem, o MMFDH informou, via assessoria de imprensa, que executa a maior parte das políticas públicas por meio de convênios, termos de execução descentralizada, fomento e colaboração, com parceiros nas esferas pública e privada. "Uma vez formalizados os instrumentos de parceria, a execução dos objetos pactuados depende da expertise do parceiro escolhido”, disse a pasta. "Assim, ocorre uma diferença entre o valor empenhado e o valor pago. Os valores não pagos em um exercício são inscritos em 'Restos a Pagar', sendo transferidos para um ou mais exercícios seguintes."


Quando o governo empenha um valor, ele apenas faz uma reserva, assina um contrato. Mas, na prática, enquanto não é pago, o recurso ainda não chegou ao seu destino para permitir que a política pública funcione. O valor empenhado pode ser quitado ao longo dos anos seguintes ou até mesmo não ser pago, caso haja quebra de contrato pela outra parte.


— O governo considera empenho como despesa executada. Do lado de quem recebe ou monitora, a gente faz uma leitura crítica porque era um recurso que poderia ser gasto no ano, mas só vai chegar na ponta nos anos seguintes — explica Carmela Zigoni, assessora política do Inesc. — Qualquer dinheiro não executado naquele ano significa que, na ponta, aquela mulher não acessou um serviço.


Gasto caiu dois terços


A execução financeira para ações de combate à violência contra a mulher variou entre R$ 80 milhões e R$ 105 milhões nos três primeiros anos da década. Em 2014, ainda no governo de Dilma Rousseff, atingiu o maior patamar do período, somando R$ 193,3 milhões. Em 2017, primeiro ano inteiro sob o comando do presidente Michel Temer, o gasto foi de R$ 66,8 milhões. Em 2019, já no governo de Jair Bolsonaro, a execução financeira para área somou R$ 47,8 milhões, caindo 26% em 2020, para R$ 35,5 milhões.


Entram nessa conta os programas orçamentários específicos para mulheres de 2011 a 2019. Em 2020, com o novo plano plurianual (PPA), o programa ‘Políticas para as Mulheres, Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência’ passou a se chamar ‘Proteção à Vida, Fortalecimento da Família e Defesa dos Direitos Humanos para Todos’ e se tornou mais abrangente. Com auxílio do Inesc, foram selecionadas as ações específicas para mulheres dentro dele.


Principal iniciativa da área, a Casa da Mulher Brasileira recebeu apenas  R$ 67,8 mil do Ministério da Mulher, Família e Diretos Humanos (MMFDH) em 2020, embora a pasta comandada por Damares Alves tivesse R$ 65,4 milhões disponíveis para essa ação. Em 2019, nada foi gasto com a iniciativa que tem como objetivo reunir num mesmo lugar todos os serviços necessários para o acolhimento da mulher em situação de violência, com atendimento psicossocial, jurídico e abrigo para as vítimas e seus filhos. Hoje o país tem apenas seis casas em funcionamento, e uma desativada. No início de 2020, Damares chegou a prometer a construção de 25 novas unidades até o fim do mandato, mas nenhuma saiu do papel no ano passado. Em fevereiro a promessa foi renovada para 27 casas até o fim deste ano.


O reforço na divulgação do canal de atendimento foi a principal medida do governo para combater a violência doméstica que se agravou durante a pandemia — os feminicídios subiram 2% no primeiro semestre de 2020, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). No ano passado, as denúncias passaram a ser recebidas também por aplicativo, WhatsApp e Telegram, mas nenhum valor adicional foi direcionado para o serviço.


Pandemia não muda o quadro

Nem mesmo os créditos extraordinários liberados devido à crise sanitária mudaram o panorama em 2020. De acordo com dados obtidos pela reportagem via Lei de Acesso à Informação, dos R$ 45 milhões recebidos pelo MMFDH via Medida Provisória 942/20,  apenas R$ 8,2 milhões (18%) foram destinados para ações específicas para mulheres: distribuição de alimentos e uma campanha de conscientização.


Também não foram identificados gastos para o programa Salve uma Mulher, lançado em outubro de 2019 com o intuito de capacitar funcionários de estabelecimentos públicos e privados para identificar e auxiliar mulheres em situação de violência. A promessa era de treinar 476 mil pessoas na primeira etapa do projeto, e 2 milhões em dez meses. A reportagem solicitou informações ao ministério via assessoria de imprensa, mas não teve resposta.

Organismos internacionais como a ONU Mulheres e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) fizeram alertas sobre o impacto da crise sanitária na violência doméstica. Isso porque a pandemia potencializa fatores de risco. Se por um lado,  houve interrupção ou redução da oferta de serviços presenciais das redes de segurança pública e saúde, por outro lado, houve um aumento da convivência em casa, o que pode tornar mais frequentes episódios de violência em um contexto de crise financeira.

Ao redor do mundo, governos adotaram diversas medidas para enfrentar o problema. França, Espanha e Itália, por exemplo, transformaram quartos de hotéis em abrigos temporários. Na Argentina, foram criados centros de aconselhamento em supermercados e farmácias para que as vítimas pudessem fazer a denúncia sem retaliações do agressor. Assim como aconteceu com as medidas de isolamento social, no Brasil, estados e municípios implementaram suas próprias medidas extraordinárias. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, foram criados o boletim de ocorrência e o pedido de medida protetiva online.

O Globo
Agora Sul
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