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BLOGS E COLUNAS

O menino que acabou com a maior atração do circo do Pelado

27/12/2021 11h22

Eu contava dez, talvez onze anos de idade. Eu, Piu, Dadá, Rodrigo e sei lá quantos mais amigos, moradores do bairro Fábio Silva, estávamos empolgados porque havíamos ouvido os desocupados do boteco falando que uma caravana de circo havia chegado à nossa comunidade.


Amontoados em um caminhão velho e dividindo espaço com as parafernálias estruturais, o pequeno grupo, liderado pelo eclético artista conhecido como Pelado, desembarcou em solo "fabiosilvense" numa esquisita manhã de sol e chuva.


Em um terreno baldio, quase ao lado de um casarão conhecido pelo nome de Bico Verde – que anos antes era iluminado por luzes vermelhas – eles ergueram os madeirames corroídos pelos cupins e cobriram o alicerce circular com lonas velhas e furadas


O senhor Pelado, além de dono do circo, acumulava as funções de bilheteiro, apresentador, narrador, palhaço...

Sua esposa era uma jovem senhora de aparência judiada pela rotina dura daquela vida sem raízes. Cuidava dos filhos, lavava as roupas dos artistas, preparava a comida e protagonizava atrações perigosas.

Os espectadores ficavam apreensivos quando ela caminhava com os pés descalços sobre um amontoado de cacos de vidro. E como não bastasse o risco diário de lacerar os pés, na apresentação seguinte, a ameaça à sua vida era ainda mais evidente. Amarrada a uma parede de tábuas, ela permanecia sob a mira do olhar etílico do marido: o atirador de facas.


Havia também um malabarista que jogava bolinhas para o alto e equilibrava uma escada de madeira no queixo. E outro rapaz, conhecido como Cocada: o cuspidor de fogo. Embora Cocada fosse desgraçadamente feio e tivesse um bafo irremediável de gasolina, nos dias de folga, andava pelo bairro tentando ganhar a simpatia das meninas pela força sedutora do ofício artístico.


Haviam outras apresentações, porém a que mais fazia o público vibrar era a montaria no jumento Meida. (O nome do burro era a junção dos nomes Meri e Idalino, homenagem de Pelado aos sogros). A brincadeira acontecia da seguinte forma: O palhaço Pelado colocava o asno dentro do picadeiro, e depois desafiava a plateia: 

"Quem conseguir montar no jumento sem cair, leva pra casa cinquenta contos!"


Durante duas semanas, dezenas de corajosos tentaram vencer o desafio. Mas o bicho era dos bons. Saltava alto, lançava gente grande pra cima e aplicava coice certeiro na boca do estômago, fazia o camarada comer terra, cuspir sangue e cacos de dentes. Alguns espertinhos, para tentar ganhar a confiança do burro antes do espetáculo começar, iam até o pasto ao lado do circo para oferecer capim ao Meida.


Acompanhei as façanhas do destemido burro desde a primeira apresentação. E durante esse tempo, avaliei os riscos e acumulei coragem para acabar com a hegemonia do endiabrado.


Em uma noite de sábado de sessão lotada, quando Pelado desafiou o público, fui o primeiro a me voluntariar. E lembre-se, caro leitor, eu tinha no máximo onze anos de idade. Se fosse nos dias de hoje, alguém acionaria o Conselho Tutelar, meus pais seriam presos e o circo seria interditado.

Mas naquele tempo (e nem faz tanto tempo assim) quase tudo era permitido. A plateia queria ver o burro tirar sangue dos atrevidos. E não era crime e nem pecado se o desafiante fosse criança ou idoso.


Entrei no picadeiro. A galera vibrou a ponto de fazer o chão tremer. Crianças, jovens e velhos assoviavam e gritavam num frenesi empolgante. A maior parte da torcida, é claro, estava a favor do burro. Pelado manteve o asno parado para eu montar. Subi, segurei forte na crina e cravei os calcanhares na virilha.


Quando Pelado soltou o burro, enfurecido, começou a pular e rodopiar, mas como não conseguiu me derrubar, ficou exausto e diminuiu o ritmo. O dono do circo percebeu que sua maior atração estava a ponto de ser derrotada. Então ele passou a chicotear a minha perna a fim de me fazer desistir da montaria pela dor. Senti a carne queimar, mas não desmontei.


Aquele era o meu momento de glória e a única possibilidade de desistência era por parte do burro. E foi o que aconteceu. O bicho rendeu-se e eu fui ovacionado pela galera, tratado como herói.


Pelado fico furioso e negou-se a pagar o valor em dinheiro o qual eu tinha direito de receber pela vitória. Alegou que eu feri o regulamento quando meti os calcanhares na virilha do burro. Ou seja, o trapaceiro criou uma regra depois do jogo ter acabado!


Mas o castigo de Pelado veio a cavalo. Ou, melhor dizendo, a jumento. Depois daquela memorável noite de sábado, Meida ficou dócil e não prestou mais para realizar aquele estúpido espetáculo. O circo foi embora com uma atração a menos. E dizem que por causa da alta rejeição popular, encerrou as atividades meses depois.


E eu? Embora eu tenha ficado triste por não ter recebido o prêmio prometido, fiquei conhecido no bairro como "o menino que acabou com a maior atração do circo do Pelado."


E para os Pelados da vida que maldosamente tentam impedir a minha tranquila caminhada, eu deixo uma mensagem: continuo firme e forte –ajudando a desmontar circos desonestos.




MACIEL BROGNOLI
Crônicas e contos
Maciel Brognoli é guarda municipal de Tubarão, graduado em Administração Pública, especialista em Segurança Pública e Gestão de Trânsito e escritor. Ocupa a cadeira n° 27 da Academia Tubaronense de Letras (Acatul) e escreveu quatro livros.
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