A história que vou contar não aconteceu há tanto tempo assim. No entanto, como nos últimos trinta anos o mundo se transformou e evoluiu numa velocidade nunca antes vista, aos olhos dos mais jovens ela pode soar como um relato do século XIX.
Só para dar um exemplo de como eram as coisas: houve um período, na minha infância, em que ficamos sem televisão em casa, e videochamada em telefones era apenas uma ideia futurista dos filmes de ficção científica. Para mim, porém, esses dias passados são apenas mais uma entre tantas memórias afetivas que guardo com carinho dentro de mim. São lembranças que, de vez em quando, voltam a me visitar. E, quando voltam, peço licença e as transformo em palavras.
Na segunda metade da minha infância, minha família se mudou de Pedras Grandes para o bairro Fábio Silva, em Tubarão. Entre tantas coisas que vi e vivi (e que hoje já não existem mais), lembro-me de uma cena repetida todas as manhãs. Antes mesmo de o sol nascer, surgia na rua um senhorzinho de boina marrom, camisa azul de botões e calça social de cintura alta. Ele conduzia uma pequena carruagem de duas rodas, puxada por um cavalo, conhecida como “aranha”. Era o leiteiro.
Ele parava em frente à minha casa e gritava:
— Ó, leite!
De dentro, eu corria até a cozinha, pegava uma panela e ia ao encontro dele. O leiteiro então abria um grande tacho de alumínio, mergulhava um canecão e despejava dois litros de leite fresco na panela que eu estendia com as duas mãos. Assim acontecia todas as manhãs, não só na minha casa, mas também em algumas residências da vizinhança.
Até que, um dia, o velhinho do cavalo e da aranha nunca mais apareceu. Disseram que havia morrido. O mesmo destino teve, quem sabe, o homem que vendia galinhas vivas numa Kombi azul barulhenta, desaparecido misteriosamente anos antes. Eles já eram homens velhos, e talvez tenham morrido sim, como os adultos diziam.
Mas, no fundo, eu sei: não fui testemunha da morte daquele leiteiro nem daquele vendedor de galinhas vivas. Fui testemunha de algo mais marcante: a morte daquelas profissões. Depois daquele dia, nunca mais vi um leiteiro conduzindo sua aranha puxada por cavalo, nem um vendedor de galinhas vivas guiando qualquer Kombi.
Hoje em dia, tudo pode ser encontrado no supermercado. Mas ainda guardo na memória a voz do velhinho gritando: “Ó, leite!”
E o som do alto-falante da Kombi passando na minha rua, anunciando: “Olha a Kombi da galinha! Galinha gorda, galinha graúda, galinha da pena vermelha!”
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