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BLOGS E COLUNAS

Ingratidão com Zé do Caixão

22/04/2021 13h41

No momento em que o corpo chegava à capela mortuária para ser velado, Zé do Caixão já estava junto dos familiares e amigos do defunto a lamentar o infausto. Zé morava há muitos anos num pequeno barraco construído na margem direita do rio que divide sua cidade. Abandonado pelos parentes, Zé do Caixão tinha duas alegrias na vida: estar na companhia de um cão de rua que o seguia há anos, e escutar a rádio local que comunicava cedinho as notas de falecimento.


Todas as manhãs, antes do alvorecer e de o galo cantar, um som estridente ecoava nos ouvidos daqueles que caminhavam pelas ruas próximas do barraco de Zé, e todos sabiam que se tratava de seu radinho a propagar as notícias fúnebres em primeira mão. Essa fora a rotina de Zé durante 30 anos. Ao saber qual era o endereço da cerimônia fúnebre, ele seguia para o local. Calçando sandálias de dedo e o inseparável rádio a pilhas debaixo do braço, transitava entre os parentes e amigos do finado, buscando informações. 


– Qual o nome do falecido? – questionou Zé a um senhor, num dos muitos velórios que comparecera. 


– É Alberto. Ou era. Não sei muito bem como me referir a um cadáver. 


– Morreu de quê? 


– Ele teve um infarto fulminante, logo depois de sacar o primeiro pagamento da aposentadoria. A viúva disse que o coração do marido fraquejou ao saber que, depois de tantos anos de contribuição à Previdência Social, o “benefício” que recebera do governo não seria suficiente para pagar os medicamentos que necessitava consumir para se manter vivo. 


Naquela rotina diuturna de vigília aos defuntos, Zé tornou-se tarimbado em eventos fúnebres, seu coração demonstrava profunda tristeza e sofria com o sentimento de perda. Sentava-se num cantinho da sala fúnebre e, com os olhos marejados de emoção, acompanhava a cerimônia até o último minuto. Além do mais, Zé do Caixão não se contentava apenas em ficar velando, fazia questão de ajudar a carregar a urna mortuária até a morada final. Ele sempre encontrava um jeito de ser o primeiro a segurar a alça do caixão. Como sua mania mórbida era afamada em toda região, ninguém se atrevia a deixá-lo de fora da empreitada, embora seja costume que tal honra deva ser concedida aos familiares e aos que tiveram proximidade com o finado. 


Mais um dia raiou na cidade. Os pássaros cantavam nas árvores, as pessoas transitavam pelas ruas, e as crianças divertiam-se nas praças. Tudo parecia normal, exceto pelo fato de que o rádio de Zé, nesse dia, não emitiu o som que todos os dias se escutava. Seu aparelho não ligou, porque naquela manhã ele deixou de ser rádio-ouvinte e virou notícia na voz do comunicador que tanto apreciava. Zé do Caixão havia falecido.  


Sem familiares ou amigos que custeassem as despesas funerárias, seu corpo foi ajeitado num caixão grosseiro doado pela prefeitura, e velado na sala lúgubre e malcheirosa do cemitério municipal. Em seu velório, não compareceu um sequer dos familiares daqueles tantos falecidos que ele ajudara a carregar até a cova nos últimos 30 anos. Nada de políticos a lamentar a terrível perda, nem religiosos orando para que sua alma alcançasse um bom lugar ao lado de Deus. Somente um velho amigo estava lá.  


Essa ingratidão aconteceu logo com Zé Caixão, que comparecera a milhares de cerimônias fúnebres e, se preciso fosse, disputava a cotoveladas o direito de ajudar a conduzir o defunto até a última morada. Quando chegou a vez de Zé ser levado, a quantidade de alças do caixão era maior que o número de pessoas a lhe prestar a última homenagem.


Zé foi carregado até a sepultura pelo único amigo presente no funeral, com ajuda dos coveiros de plantão e cortejado por seu fiel cão vira-lata. Foi sepultado na ala dos indigentes do cemitério municipal, onde o amigo cachorro passou a dormir sobre a sepultura até o último dia de sua sofrida vida de cão sem dono.



MACIEL BROGNOLI
Crônicas e contos
Maciel Brognoli é guarda municipal de Tubarão, graduado em Administração Pública, especialista em Segurança Pública e Gestão de Trânsito e escritor. Ocupa a cadeira n° 27 da Academia Tubaronense de Letras (Acatul) e escreveu quatro livros.
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