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BLOGS E COLUNAS

A caixa de cãezinhos abandonados

06/04/2022 08h37

Levantei cedinho. Abri a janela da sala e vi que os primeiros raios solares começavam a pintar de dourado o domingo. O dia chegou com temperatura propícia para alimentar o meu vício por passeios de bicicleta. Preparei um café reforçado, vesti o traje apropriado, enchi a garrafinha com água, lubrifiquei a corrente, conferi os pneus e parti rumo a Pedras Grandes. A ideia era ir até Azambuja, subir a região montanhosa de Treze de Maio e retornar a Tubarão pela localidade do Sertão dos Corrêas.


Mas tudo que planejei ficou na expectativa, pois a minha jornada fora interrompida na primeira curva depois do CTG Cidade Azul – no bairro Guarda –  onde encontrei sete filhotinhos de cães abandonados. Os rastros no local evidenciavam que o covarde criminoso agira na calada daquela madrugada. Os inocentes filhotes não se deram conta de terem sido rejeitados. Corriam e brincavam sobre o tapete negro, como se a rodovia fosse o quintal seguro de um lar amoroso de cães. Era uma questão de tempo para serem esmagados pelas rodas dos furiosos automóveis que transitavam por aquelas bandas.


Para evitar um massacre, coloquei-os dentro da mesma caixa de papelão que haviam sido abandonados. Lembrando que eu estava longe de casa e de bicicleta, situação adversa que diminuía as minhas possibilidades de oferecer um socorro mais digno. Então, para amenizar o risco de morte dos indefesos, deixei-os num canto afastado da rodovia que julguei ser mais seguro e, de coração partido, continuei o meu caminho.


Mas a verdade é que eu não fui muito longe. Quando olhei para trás, eles estavam me seguindo. Fato que me fez desistir dos meus planos, para levá-los comigo até um local verdadeiramente protegido. Mas isso significava que eu teria que pedalar de volta pra casa por cerca de 10 km com os cãezinhos embaixo do meu braço. Foi um trajeto difícil e cansativo, pois juntos eles eram pesados e quando sacolejavam me faziam perder o equilíbrio.


A ideia era deixá-los em minha residência até encontrar pessoas interessadas em adotá-los. O problema é que a minha cadela Laila não aceitou os novatos. Meu esforço fora em vão. De que adiantava livrar os filhotes do atropelamento, mas colocá-los na mira dos dentes afiados da Laila?


Mais uma vez eu tinha que afastá-los da morte. Coloquei-os no carro e dirigi até o centro de zoonose. Somente lembrei que era domingo quando dei com a cara no portão. Então fui ao cemitério que fica ao lado para tentar conversar com alguém que pudesse me dar algum tipo de orientação e apoio. Não encontrei gente por lá, senão os moradores eternos e alguns cãezinhos amigáveis brincando na imensa área verde protegida de pessoas ruins e de impiedosas rodas de automóveis. Tinha ração e água por lá também.


Esgotadas as minhas opções, a única saída que me restou foi deixá-los no pátio do cemitério. Longe de mim querer repetir o crime de abandono. Minha intenção era voltar no dia seguinte, conversar com os responsáveis pelo centro de zoonose e juntos encontrarmos uma solução. Então deixei os filhotes brincando com os outros cães, e saí de fininho do cemitério para não ser seguido por eles.


Eu já havia dirigido cerca de 2 km quando vi pelo retrovisor a aproximação de uma motocicleta. Buzinando, o condutor me ultrapassou e fechou a minha frente, obrigando-me a parar. Eu só entendi o que estava acontecendo quando reconheci o condutor: o coveiro. Enfurecido, ele veio em minha direção acusando-me de abandonar os filhotinhos. Fiquei me perguntando de que buraco ele havia saído, já que na necrópole eu não tinha visto ninguém. Ele me julgava pelo final da história. Não fazia a menor ideia de tudo que se passara comigo naquela manhã de domingo.


E o que eu poderia  dizer para convencer o justiceiro sepultador que eu havia resgatado aqueles filhotes da morte? Ele carregava uma faca reluzente na cintura. Em nenhum momento fui ameaçado, mas como o clima era tenso e tenho um lote no cemitério que ele semeia gente, minha imaginação começou a trabalhar e inevitavelmente pensei: "nunca passou pela minha cabeça que eu seria morto e enterrado pela mesma pessoa". 


A verdade é que eu fui praticar o bem e acabei me metendo numa enrascada! O mal (como quer que você o conceba) sempre usa de artimanhas para tentar nos fazer desistir de praticar o bem. O que me salvou foi a poesia. Sim, poesias salvam vidas! Naquele momento difícil, lembrei-me de um dos conselhos do poema Desiderata ["fale sua verdade mansa e calmamente..." ]. Expliquei a minha odisseia obedecendo a prudência poética.


Como eu não revidei ao ataque verbal do coveiro, ele desarmou o espírito e conseguiu ver em mim a verdade além das meras palavras. Inclusive prontificou-se a cuidar dos filhotes pelo tempo que fosse necessário. Fui embora. Quando retornei ao cemitério no início daquela mesma semana, para a minha feliz surpresa, os cãezinhos já haviam sido encaminhados para adoção.


Querem saber se eu me arrependi de ter desistido do meu momento de lazer para resgatar os cãezinhos abandonados? Faria tudo outra vez.



MACIEL BROGNOLI
Crônicas e contos
Maciel Brognoli é guarda municipal de Tubarão, graduado em Administração Pública, especialista em Segurança Pública e Gestão de Trânsito e escritor. Ocupa a cadeira n° 27 da Academia Tubaronense de Letras (Acatul) e escreveu quatro livros.
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