Diante de escassez de imunizantes no Brasil, turistas de classe A e B enfrentam quarentena no México e altos custos em busca de doses em território americano.
Quase meio milhão de reais. Foi esse o custo que um empresário da construção civil de São Paulo bancou para levar a família para tomar a vacina contra a covid-19 nos Estados Unidos. O valor da jornada dos sete adultos e duas crianças - que incluiu 15 dias no México para cumprir quarentena imposta pelas autoridades americanas - seria o suficiente para comprar 45 mil doses de Coronavac, o imunizante mais usado no Brasil até agora.
"Coloca um nickname aí pra mim porque não quero confusão para o meu lado, já tenho cinco stents no coração", afirmou à BBC News Brasil o dono de incorporadoras e imobiliárias com capital social declarado de mais de R$ 10 milhões, a quem chamaremos nesta reportagem de Roberto*.
Aos 60 anos, Roberto é o patriarca de uma família que qualifica como "unida e conservadora". Ele, a mulher, de 57, as três filhas do casal, com idades entre 24 e 35 anos de idade, e dois genros embarcaram para o México em meados de abril, pouco antes que o país batesse a marca de 400 mil mortos na pandemia. "Vários amigos nos EUA e o gerente do banco me alertaram que eu conseguiria tomar as doses lá e já estávamos ficando loucos trancados em casa", diz Roberto, que relata ter cumprido quarentena rigorosa, em uma casa de campo, por mais de um ano.
Ele tem comorbidades: além de problemas cardíacos, é obeso. E via no novo coronavírus uma ameaça grave, especialmente "depois que um amigo de 48 anos, semi-atleta e sem problemas de saúde, faleceu de covid". E embora sua vez na fila não estivesse distante no calendário vacinal do governo federal, Roberto não queria deixar o restante da família para trás - para a filha de 24, por exemplo, não há nem previsão de imunização no país.
"Meu pai foi claro em dizer que queria que todos tivessem a vacina. Não fazia sentido uma parte da família estar protegida e a outra não. Por isso todo mundo tinha que ir junto. E dinheiro não era uma questão, então depois que ele propôs, embarcamos em apenas quatro dias", diz Jéssica*, filha de Roberto. Todos receberam a vacina de dose única da Janssen em Orlando, na Flórida. "Quando chegamos aos EUA, nem deixamos as malas na casa em que ficaríamos, fomos direto para o posto de vacinação", completa Jéssica.
O empresário endossa o comentário da filha. Chega a mencionar um sonho premonitório de que um dos sete integrantes do clã se contaminava. "Eu tinha o dinheiro e me culparia eternamente se algo acontecesse com minha família porque não os levei para tomar a vacina", diz.
Escassez de vacina no Brasil
Com apenas 18% da população imunizada com ao menos uma dose, o Brasil enfrenta uma escassez de insumos para produzir imunizantes tanto no Instituto Butantan (Coronavac) quanto na Fiocruz (Astrazeneca-Oxford).
O país também poderia já ter recebido mais lotes da vacina da Pfizer, mas, conforme relatou o ex-presidente da farmacêutica à CPI da Covid ao longo da última semana, a gestão Bolsonaro recusou seis ofertas de doses da Pfizer até fechar o primeiro contrato, apenas em março desse ano.
O cenário de alta mortalidade associada à falta de perspectiva de acesso ao imunizante fez com que brasileiros da classe A e B passassem a estudar formas de obter vacinas fora do país. Segundo a agente de viagens Márcia Rosa, de 53 anos, ela chegou a fechar viagens para brasileiros irem aos Emirados Árabes Unidos em busca da vacina, antes que ficasse claro que nos EUA também seria possível ser vacinado como turista.
Rosa viralizou nas redes sociais na semana passada com a campanha de sua agência, a Flytour, que oferecia: "Embarque imediato: México + Nova York para a vacina".
A oportunidade estaria acessível para quem topasse desembolsar R$ 18.728 (que poderiam ser divididos em até 10 parcelas): quase mil reais por dia, já que o pacote previa duração de 21 dias para a empreitada. "Era o necessário para cumprir o tempo de quarentena exigida pelos americanos e tomar a vacina com calma, se recuperar de qualquer efeito colateral antes de voltar", disse Rosa à BBC News Brasil.
Em menos de uma semana ela afirma ter recebido centenas de consultas e fechado 13 pacotes. "A maioria dos nossos clientes são pessoas entre 24 e 42 anos, que não têm nem perspectiva de se vacinar no Brasil. E agora que os EUA liberaram vacina a partir dos 12 anos, há muitos pais de adolescentes em busca também", explica Rosa.
Ela mesma se vacinou recentemente em Nova York. A agência oferece auxílio para que o turista faça os agendamentos necessários para a aplicação. "A gente deixa claro que a vacina não é o nosso produto, o que a gente vende é a possibilidade de se vacinar", diz a agente.
Em quase 30 anos no mercado de turismo, Rosa conta que esta foi sua campanha de maior sucesso - e tem esperança que o êxito a ajude a reverter o tombo que a pandemia representou nos negócios. De olho na mesma oportunidade, já há outras empresas no mercado com pacotes de viagem semelhantes.
Clima de 'quem dá mais' para vacinar nos EUA
E se brasileiros da classe A e B têm se mostrado dispostos a gastar polpudas somas para conseguir vacina no braço o quanto antes, nos EUA a situação é oposta. As autoridades têm se desdobrado em soluções criativas para atrair a população aos postos de vacinação.
Na última quinta-feira, o governador de Ohio, o republicano Mike Dewine, anunciou a que talvez seja a mais ambiciosa dessas medidas até agora. Com apenas 36% da população completamente vacinada e uma baixa demanda pelos imunizantes contra covid-19, o Estado resolveu que, a partir do próximo dia 26, irá sortear US$ 1 milhão por semana entre quem tiver se apresentado em um dos postos de vacinação nos sete dias anteriores ao sorteio.
A loteria durará cinco semanas. E como os EUA agora começam a vacinar adolescentes a partir de 12 anos, caso o vencedor do sorteio tenha entre 12 e 18 anos, o prêmio será o pagamento total das mensalidades dos quatro anos de universidade (que são famosas por serem tão boas quanto caras), mais o suficiente para o custeio de alimentação, livros e moradia durante todo o período universitário.
Outros governantes e empresas também ofereceram incentivos - incluindo ingressos para jogos esportivos, vale-presente, bolos de palito grátis e, em Nova Jersey, quem comparecesse a um posto de vacinação saia de lá imunizado e com uma cerveja em mãos.
"Huuummmm… Vacinação! Eu estou sentindo uma coisa muito boa em relação à vacinação nesse momento", afirmou o prefeito de Nova York Bill de Blasio em um vídeo divulgado na última semana. Entre uma mordida e outra de um hambúrguer e batatas fritas da rede Shake Shack, ele contava à população local que quem aparecesse pra vacinar ganharia um combo como aquele da lanchonete.
As estatísticas mostram que os incentivos são necessários: embora apenas 60% da população adulta tenha recebido ao menos uma dose de imunizante, a procura por vacinas já caiu significativamente nos EUA. Se, no início de abril, a média nacional de vacinação diária era de 3,4 milhões de doses, agora, esse número caiu para 2,2 milhões de vacinas aplicadas por dia. Diferentes pesquisas mostram que cerca de 20% dos americanos não pretendem se vacinar. O percentual é considerado alto pelas autoridades sanitárias do país, que temem a possibilidade de uma nova onda de covid-19 por causa dessa recusa.
"Os americanos estão praticamente laçando as pessoas na rua pra tomar vacina. Eu fiquei chateado de ver, é uma coisa descabida pensar que aqui estão te oferecendo isso sem parar enquanto no Brasil as pessoas estão implorando por vacina e não tem", diz o empresário brasileiro Douglas Moretto, de 42 anos.
O fator Bolsonaro
Por ter uma filha de três anos de idade nascida nos EUA, Moretto pôde entrar em território americano no começo de abril sem enfrentar a quarentena em um terceiro país. Ele embarcou com a filha e a mulher para Orlando, onde já recebeu duas doses do imunizante da Pfizer.
"Na hora ninguém nem te pergunta nada. Os americanos querem resolver o problema, não querem saber se você é turista, se é residente. Se tivesse vacina no Brasil, eu não viria. Me senti até um pouco egoísta por ter tido uma oportunidade dessas, incomum. Tomei a vacina antes da minha mãe, que tem 63 anos", relata Moretto.
Tanto ele quanto Roberto votaram em Bolsonaro em 2018 e se dizem decepcionados com as ações do governo federal em relação à vacinação. "Ele foi um pouco estúpido de ir contra a vacina e investir em remédio sem eficácia", diz Moretto, em referência ao investimento do presidente em drogas como a hidroxicloroquina e a ivermectina.
Já Roberto contemporiza. Diz que Bolsonaro errou ao não sentar para negociar com a Pfizer as condições do contrato, mas que seu erro não foi tão relevante para o resultado final da pandemia no país. "Não ia mudar tanto assim, no máximo reduziria entre 3% e 5% das mortes até agora", especula o empresário. Se sua conta estivesse certa, isso representaria ter salvo a vida de algo entre 13 mil e 22 mil brasileiros.
"Eu gostaria que todo brasileiro tivesse a mesma condição de vacinar que eu. E gostaria que o Brasil fosse como os EUA, mas infelizmente não é", diz o dono de incorporadoras.
E embora as decisões de Bolsonaro tenham arrancado R$ 450 mil de seu bolso, ele é taxativo em dizer que entre o atual mandatário e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que emerge como principal força de oposição em 2022, vai de Bolsonaro nas urnas de novo. "Esse outro (Lula) eu abomino. É tudo o que eu e minha família não queremos", diz.
Reduto bolsonarista em 2018, a Flórida vive hoje uma divisão em relação a Bolsonaro. Para o brasileiro Richard Harary, CEO da Macrobaby, uma loja varejista de artigos para bebê sediada em Orlando, o sentimento de decepção é a tônica entre os brasileiros que procuram vacina no país.
O estabelecimento de Harary é um dos pontos de vacinação anti-covid na Flórida. Por dia, entre 200 e 300 pessoas recebem suas doses entre araras de macacões, chupetas e carrinhos de bebê. A esmagadora maioria é de brasileiros.
"As autoridades aqui nos procuraram para propor que a gente oferecesse esse serviço justamente para acessar mais a comunidade brasileira, tanto de turistas como de migrantes que moram aqui em situação irregular e estavam com medo de se vacinar e acabar deportados", explica Harary.
Depois de apoiar o atual presidente, ele conta que começou a se desiludir com o atual governo bem no início da pandemia, durante a visita do mandatário brasileiro à Flórida, em março de 2020. "Quando ele esteve em Miami, eu estava lá entre os empresários que o receberam. Morri de medo porque um dos assessores dele já estava contaminado e tinha passado horas do meu lado", diz.
De acordo com o empresário, a loja já recebeu mais de duas mil consultas de brasileiros que estão deixando o país em breve ou já estão em quarentena no México ou na Costa Rica para se vacinar ali.
"As pessoas estão sem esperança de conseguir se proteger no Brasil. Todo mundo, inclusive eu, conhece alguém que morreu da doença. Quem tem condição, vai buscar tomar fora mesmo. O país não merecia isso, merecia um governo melhor. O que o Bolsonaro fez, na minha opinião, foi dar oportunidade para o outro lado, da esquerda, voltar com força. É triste", afirma Harary.
*O nome dos entrevistados foi alterado para preservar suas identidades.