Todo adulto difícil carrega consigo uma criança ferida. Essa é uma verdade que muitas vezes esquecemos, apressados em julgar comportamentos, em rotular as pessoas ao nosso redor. Olhamos para os gestos ríspidos, as respostas cortantes, a dureza na expressão, e achamos que estamos lidando apenas com a superfície desse adulto. Mas por trás da máscara existe um menino ou uma menina que ainda chora por algo que nunca foi curado.
As feridas da infância são silenciosas e profundas. Às vezes, não têm um nome claro, um rosto exato, mas elas existem como fantasmas que assombram mesmo depois que as luzes se apagam. Uma palavra que não foi dita, um afeto que nunca foi sentido, uma ausência que nunca foi preenchida. Feridas emocionais não sangram aos olhos dos outros, mas corroem por dentro, criando muros de proteção ao longo dos anos. E, ironicamente, esses muros que erguemos para nos proteger acabam nos aprisionando.
A criança ferida dentro do adulto difícil reage ao mundo com desconfiança. O olhar atento, pronto para a próxima decepção, para o próximo abandono. Porque quando se experimenta a dor cedo demais, a vida se transforma em um campo minado e tudo pode parecer uma ameaça. O afeto genuíno se torna suspeito, a generosidade parece ter segundas intenções e a vulnerabilidade é um luxo que não se pode mais permitir.
Essas crianças crescem, mas não realmente. O corpo muda, o rosto amadurece, mas lá dentro ainda há um pedido de socorro que ficou preso no tempo. Muitos adultos difíceis se perderam na busca por consolo e carregam essa busca na forma de mágoa e resistência. O mundo cobra que sejamos resilientes, que superemos as adversidades, mas quem define o prazo para curar uma dor que não deveria ter sido sentida tão cedo?
A verdade é que a criança ferida se manifesta em pequenas ações: na intolerância ao erro do outro, na necessidade de controle, na dificuldade de confiar. Ela aparece nas explosões de raiva que parecem desproporcionais, nos silêncios que pesam mais que qualquer palavra. O adulto difícil, aquele que afasta as pessoas, que constrói barreiras, é o mesmo que, em algum momento, foi afastado ou teve o coração partido antes de entender o que era amor.
Entender que há uma criança ferida dentro de cada adulto difícil é um exercício de empatia. Não justifica comportamentos tóxicos, não tira a responsabilidade das ações, mas nos ajuda a olhar além das aparências. Nos faz perceber que, muitas vezes, o que vemos como dureza é, na verdade, fragilidade disfarçada. E quem já esteve ferido sabe o quanto dói mostrar essa fragilidade de novo.
Curar essas feridas não é simples. A vida não nos dá um manual para lidar com os traumas, nem nos oferece garantias de que o tempo irá, por si só, resolver. Mas talvez o primeiro passo seja reconhecer essa criança dentro de nós. Dar-lhe o espaço que ela nunca teve, escutar o que ela tem a dizer e, de algum modo, oferecer o colo que ela tanto precisou.
Talvez, se enxergássemos essa criança ferida com mais compaixão, tanto nos outros quanto em nós mesmos, o mundo fosse um pouco menos difícil. Porque, no fim das contas, todos carregamos marcas que os anos não apagam — e cada um, à sua maneira, está tentando sobreviver com o que restou.
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