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BLOGS E COLUNAS

Um dia na roça de fumo

16/11/2020 19h45

Quando a primeira luz do dia iluminou a localidade de Santaninha, no município de Pedras Grandes, eu e meus primos Bira e Andinho já estávamos jogando futebol no campinho de terra batida. Naquele tempo - final dos anos 80 -, eu ainda era um garotinho mirrado, e estava em Santaninha aproveitando as férias escolares.


Bira dominou a bola no peito com categoria de profissional. Mas quando arrematou para gol com seu potente, conhecido e temido pé canhoto, o chute saiu lascado, a bola subiu alto e desgovernada, quicou pra fora das quatro linhas do campinho improvisado e rolou mansa na direção de um caminhante que se aproximava. 


O homem mandou a redonda de volta pra nós com um chute de primeira, depois veio em nossa direção e disse:


- Meninos, estou indo pra roça colher fumo. No final da tarde, eu pago uma laranjinha ou um picolé pra quem quiser trabalhar comigo. Algum voluntário?


Não precisou falar duas vezes. Naquele tempo, refrigerante ou picolé, pra nós, eram sabores raros. Meia hora depois estávamos numa gigantesca plantação de fumo. Na verdade, não sei dizer se hoje eu acho gigantesca aquela roça. É que quando a gente é criança as coisas parecem maiores do que realmente são. Mas é certo que o mar verde começava na encosta de um morro e continuava para além do topo. 


Nossa missão era colher as folhas dos pés de fumo e colocá-las dentro de uma zorra que era puxada por um boi carreiro. 


Quando a zorra ficava cheia, nosso patrão levava a carga para a estufa de fumo, que ficava ao pé do morro. Nesse ínterim, eu e meus primos continuávamos a colher e a amontoar as folhas num canto da roça. Quando ele retornava com a zorra vazia, a gente repetia a operação. Foi uma tarde de muito trabalho mas também de diversão e gargalhadas, principalmente quando nós nos agarravámos à traseira da zorra e éramos arrastados de um extremo a outro da roça. Naquele dia, colhemos folhas de fumo até o sol se esconder atrás das montanhas. 


No início da noite, fomos ao boteco, onde estava nosso contratante, para receber o pagamento prometido. Sentamos em cadeiras de palha e, em silêncio, ficamos observando ele beber cachaça e comer picadinho de torresmo.


Quando ele percebeu nossa presença, veio cambaleante ao nosso encontro e de forma direta perguntou: "laranjinha ou picolé?" 


Bira e Andinho escolheram desfrutar o sabor do picolé. Eu preferi a laranjinha. 


A garrafinha de laranjinha tinha 200ml e, como eu queria saborear o doce gosto do refrigerante por mais tempo, fiz um nó frouxo no canudinho, para que o líquido precioso custasse a passar. 


Poucos minutos depois, Bira e Andinho já tinham consumido seus picolés e olhavam para a minha laranjinha, quase intacta, com olhos de gato triste. Ofereci. Eles sugaram até a boca murchar, mas saiu quase nada. Acho que os dois não tinham a experiência necessária para dominar a técnica de sugar num canudinho retorcido.


Quando terminei, a gente até pensou em pedir mais um picolé ou uma laranjinha para cada um, pois tínhamos trabalhado bastante. Mas aí trocamos ideia sobre o que nosso contratante havia falado: "pago uma laranjinha ou um picolé pra quem quiser trabalhar comigo".


Ademais, ele já tinha bebido vários martelinhos de cana e não seria uma boa ideia fazer tal pedido.


Fomos para casa. Ao chegarmos, o tio Zé Paulo nos contou que os primos Moisés e Leco iam passar a madrugada cuidando do fogo de uma outra estufa de fumo. Como tínhamos energia de sobra, fomos pra lá também. Mas antes, passamos por uma roça onde arrancamos batatas-doces, quebramos espigas de milho e levamos para assar na brasa da fornalha. Mais tarde, quando as batatas ficaram assadas, nós cinco fizemos uma roda. Moisés pegou uma batata quente e jogou para o Leco, que jogou para o Bira... e assim passamos um bom tempo jogando a batata quente um pro outro. Rimos até doer os músculos da barriga.


Mais tarde, nos sentamos no pasto e, iluminados pela lua cheia de uma linda noite de céu estrelado, comemos milho e batata assada na brasa até nos fartarmos.


Aquele foi um dia de muito aprendizado. Momentos importantes de minha vida que estavam adormecidos, mas que foram despertados essa semana, quando fotografei essa zorra (foto) numa roça de fumo na localidade de Ilhota, no município de Pedras Grandes, SC.



MACIEL BROGNOLI
Crônicas e contos
Maciel Brognoli é guarda municipal de Tubarão, graduado em Administração Pública, especialista em Segurança Pública e Gestão de Trânsito e escritor. Ocupa a cadeira n° 27 da Academia Tubaronense de Letras (Acatul) e escreveu quatro livros.
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