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BLOGS E COLUNAS

Mais frágil que as flores

26/10/2021 14h06

Enquanto os automóveis transitavam apressados pela avenida, parado na calçada um menino pedinte observava assustado o frenético movimento. Vestia trapos. Rostinho sujo. Olhinhos sem brilho afundados num crânio revestido por fina pele. Cabelos duros, sujos e desgrenhados. Suas mãozinhas ossudas aconchegavam junto ao peito um minúsculo e improvisado ramalhete de florezinhas vermelhas: formosuras frágeis coletadas de arbustos espinhosos que cresciam sem cultivo no jardim da praça.


Os motoristas pararam por ordem da luz vermelha. Com os pés descalços no asfalto gelado de um dia de inverno rigoroso, a indesejada paisagem humana caminhou – ao lado de seu cãozinho – pelo corredor entre os veículos e parou diante do vidro semiaberto de um Toyota dourado. Com a voz quase inaudível, típica de quem é íntimo do desprezo e conhece a própria invisibilidade social, perguntou:


– Senhor, aceita "frozinha" em troca de moedinha?

O jovem motorista não olhou para o lado. Não gastou saliva com o menino. Limitou-se a apontar o dedo na direção de um aviso fixado na haste do semáforo: "Não dê esmolas".

O menino sabia juntar palavras. Sabia também que palavras unidas daquela forma só prestavam para incentivar o vício coletivo pela indiferença, anestesiar as dores da alma e cegar o corte da lâmina de partir corações.


Guardou as flores dentro da japona surrada e voltou desacorçoado para a calçada, onde encontrou uma velhinha de noventa e poucos anos. A idosa, consciente de que já perdera mil vezes o trem para o infinito e precisava urgentemente garantir acolhimento no eterno, desaposentou da algibeira uma moedinha de cinquenta centavos e ofereceu ao garotinho.

"Deus guarda lugar no paraíso para o bons de coração!", pensou ela.

O menino deu pulos de alegria e trocou sorrisos com o amigo cão. Foi à igreja agradecer pelo bom dia, porém o porteiro do templo esbravejou:


- Menino maltrapilho é aceitável, mas bicho sarnento não põe as patas na casa do Senhor!

O pequeno sentou-se na última fileira de bancos vazios. Orou, cantou e chorou por ter ganhado dinheiro suficiente para ir à padaria comprar dois pãezinhos de anteontem.

Ao final dos cânticos, no ápice da emoção, um homem escandaloso  – em palavras, gestos e lágrimas – que estava no púlpito pediu ofertas.

Obediente e ingênuo, o menino ofereceu sua única moedinha para a igreja e foi dormir faminto embaixo de uma marquise de loja no centro da cidade. O colchão de tábuas apodrecidas e o cobertor de papelão não foram suficientes para aquecê-lo naquela madrugada fria.


Quando o dia raiou, populares viram um cãozinho chorando ao lado de um corpinho separado da alma. As mãozinhas, duras e roxas, delicadamente seguravam um pequeno e frágil ramalhete de vívidas flores.



MACIEL BROGNOLI
Crônicas e contos
Maciel Brognoli é guarda municipal de Tubarão, graduado em Administração Pública, especialista em Segurança Pública e Gestão de Trânsito e escritor. Ocupa a cadeira n° 27 da Academia Tubaronense de Letras (Acatul) e escreveu quatro livros.
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