Existe uma conhecida fábula infantil que não sai da boca do povo. É a anedota “Chapeuzinho Vermelho”, criada em 1697 pelo escritor francês Charles Perrault. Na aventura, uma menina de pouca idade precisa levar alimentos para a sua avó, que mora longe. Para a emboscada, ela veste uma capa rubi, empunha uma cesta cheia de alimentos e deve atravessar uma densa floresta.
No percurso, ainda, evitando perder-se, a pequena também joga pedaços de pão aqui e ali, deixando entre os arbustos uma trilha visível para uma volta segura e sem sustos, ao mesmo tempo em que cantarola a canção: “Pela estrada afora eu vou bem sozinha, levar esses doces para a vovozinha. Ela mora longe, o caminho é deserto e o Lobo Mau mora aqui por perto”.
Entretanto, ao chegar ao seu destino, eis que a protagonista teve uma grande surpresa. Não é que a vovó estava diferente? “Deve ser porque ela está doentinha”, confabulou a sua mente inocente de criança. Assim, as orelhas grandes da mãe de sua mãe eram para escutá-la melhor. Os olhos grandes? Eram para vê-la melhor. As mãos grandes? Eram para senti-la melhor.
E o que dizer da sua boca grande? “É para comê-la melhor!”, afirmou o Lobo Mau disfarçado de senhora da terceira idade, saltando para cima da pobre garota com garras e dentes afiados. Felizmente, a mandinga do santo padroeiro dos contos de fada falou mais alto e, por uma fração de segundo, a miúda escapou, sendo salva por um caçador que passava pelas redondezas.
Agora que a memória do leitor foi refrescada e devidamente atualizada, todo mundo quer saber. Em que o comportamento humano tem a ver com a história da Chapeuzinho Vermelho? De acordo com o livro “A Psicanálise dos Contos de Fadas”, publicado originalmente no ano de 1876 e reeditado em 2009 pelo psicólogo infantil Bruno Bettelheim, tudo tem a ver com as pulsões.
Expressão utilizada pela psicologia profunda para designar os impulsos que estão entre o físico e o somático, é a respeito deles que a narrativa da guria avermelhada se baseia. De um lado, está a pulsão de vida, que se refere à tendência que as pessoas têm por buscar a satisfação, a sobrevivência e a perpetuação da espécie. Do outro, está a de morte agindo de modo contrário.
Juntas, elas dão à existência um equilíbrio quase perfeito. Como Chapeuzinho, muitos indivíduos também preferem investir a sua energia física e mental em atividades “do bem”, como: ajudar um familiar, colocar-se à disposição de um amigo, prestar assistência a um grupo necessitado, trabalhar duro para atingir a autossuficiência, divertir-se de maneira consciente e por aí vai.
Outros, preferem dar vazão ao lado Lobo Mau da coisa. Para estes cidadãos, travestir-se do que quer que seja para ter o que se quer não se encontra só no universo da ficção. São os vilões da vida real, que sonegam os seus impostos, que roubam o que não os pertence, que mentem na cara dura para se safar e que agridem quem está à sua volta sem medo de um final não feliz.
Independente de que lado você esteja, uma coisa é fato: ninguém consegue estar por completo em apenas um destes hemisférios pulsionais. Nem mesmo a guria mencionada anteriormente. Afinal, por que motivo ela deixaria um rastro por onde passa se não quisesse inconscientemente ser encontrada? Na mesma direção, por que canta pelo bosque sabendo que pode ser ouvida?
O mesmo se aplica ao seu ingênuo encontro com o Lobo Mau. No fundo, no fundo, a mente de Chapeuzinho havia captado que aquele indivíduo na sua frente não se tratava de sua avó, mas, por motivos psicológicos até então desconhecidos, uma vez que não se conhece os detalhes da vida pregressa da personagem, ela preferiu enganar-se, dando espaço para o seu possível fim.
E é aqui que precisamos estar atentos. Muitas vezes, somos mesmo incapazes de negociar de forma satisfatória com as forças opostas que nos habitam por dentro, podendo nos perder na selva e deixar tanto Chapeuzinho quanto o Lobo ficarem tão grandes e tão poderosos que só mesmo um Caçador para intervir, dando um basta definitivo nesta bagunça chamada de psique.
Tendo isso em mente, dispa-se do figurino cor de sangue, use o que estiver à mão para marcar o caminho da vitória, cante em alto e bom som quando precisar energizar o seu espírito e desvie sempre que puder dos que tentarem abocanhar o seu sucesso. O resto? Apenas siga o seu caminho, pois já tem o que precisa para não repetir a história de uma conhecida Chapeuzinho.