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BLOGS E COLUNAS

Contando estrelas no céu de minha terra

01/07/2020 14h35

Eu contava quatro ou cinco anos de idade e ainda morava na localidade de Canela Grande, interior de Pedras Grandes. Era meados dos anos 80, mas ainda me lembro bem de como eu gostava de observar as casas de madeiras enegrecidas pelo tempo, com suas chaminés de barro soprando ao vento fumaça branca dos fogões a lenha. 


A terra do meu tempo de menino era lugar de casas e pessoas simples. Meu pai, por exemplo, não tinha automóvel ou motocicleta. Sua locomoção dependia da força de suas pernas. E ele as usava bastante! Além das caminhadas até a mina de fluorita onde trabalhava, ele também pedalava longas distâncias com sua bicicleta Monark Barra Circular cor vermelha. A bicicleta era bonita e tinha badanas que enfeitavam os paralamas e protegiam as roupas em dias de chuva, pneus sempre calibrados e o freio de pé ajustado. Enfim, em perfeito estado de conservação e uso.


Na Canela Grande da minha infância, quando o sol sumia no horizonte, a lua chegava de mansinho e clareava os campos e as estradas desprovidas de iluminação pública. Nas noites em que eu andava de carona na garupa da bicicleta do meu pai, eu permanecia o trajeto todo com o dedinho apontando para o céu, contando estrelas. Lembro-me que era comum eu ver estrelas cadentes sumindo lá atrás do morro, “no vale proibido dos corpos celestes tombados”. Às vezes, eu até conseguia ver luzinha de avião piscando bem lá no alto, um sinal de que a modernidade e o luxo estavam fora do nosso alcance. Meu pai, quando percebia minhas tentativas impossíveis de contar estrelas, sempre alertava:


- Eu já disse mil vezes que apontar o dedo para as estrelas faz nascer verrugas nele. 


Certa vez, numa tarde quente de verão, pela primeira vez eu saí de casa na garupa da bicicleta com minha mãe. O destino era a residência da tia Zulma e do tio Florindo. A estrada de chão batido que levava à casa deles era cheia de curvas sinuosas, subidas íngremes e descidas perigosas. O ambiente hostil requeria do ciclista muita habilidade, experiência e equilíbrio. Minha mãe, que ainda era aprendiz e não queria arriscar-se a uma queda, preferiu empurrar a bicicleta comigo sentado à garupa. Andamos longo trecho sob o sol escaldante antes que ela cedesse ao cansaço. Quando alcançamos o alto de um morro, ela montou na magrela, olhou pra mim e disse: 


- Vamos descer embarcados.


Iniciamos a descida e a bicicleta ganhou perigosa velocidade. Ao notar que havia perdido o controle, minha mãe, desesperada, falou:


- Meu filho, reza pra Jesus proteger a gente!


- Freia que é mais fácil! - pensei, mas não falei porque eu ainda não tinha idade para dar conselhos aos adultos.


Ao perceber que a coisa tinha ficado feia, fechei os olhos, segurei firme no assento e travei as pernas na estrutura da garupa. Naqueles poucos segundos de terror, senti um intenso frio na barriga antes de sofrermos uma forte pancada. Abri os olhos, vi que havíamos colidido numa grande pedra à beira da estrada. A bicicleta bateu e ficou de pé no mesmo lugar. Milagrosamente não nos machucamos, mas a roda dianteira e o garfo entortaram bastante. 


Depois de nos recompormos do acidente, continuamos nossa jornada. Mas o que antes era cansativo piorou, pois minha mãe teve que arrastar a bicicleta danificada por uns 500 metros até a casa da minha tia. Quando chegamos diante do portão, o papagaio Loro nos avistou e disse repetidas vezes: "A Zulma não tá em casa." Só ficamos aliviados quando a ave foi desmentida pela própria tia Zulma, que apareceu à porta e nos recebeu com seu característico sorriso cativante. Minha mãe, visivelmente abalada, contou sobre o acidente. Prestativa e gentil, a tia nos serviu água com açúcar para nos acalmar os nervos. Em seguida, ofereceu café coado na hora com bolo de laranja e cavaquinho seco. 


Com tanto aconchego e carinho, eu não tive dificuldades para esquecer o acidente. Mas minha mãe continuava triste por causa dos danos materiais que causara à bicicleta. Foi então que meu tio Florindo entrou na história. Homem criativo e generoso, desde muito pequeno eu admirava suas habilidades na fabricação de ferramentas e outras parafernálias úteis que sua mente engenhosa era capaz de projetar. Ele avaliou o estrago da bicicleta, desmontou a roda e a prendeu numa bigorna. Pegou algumas ferramentas, e entre sorrisos e marteladas ele desempenou a roda, retificou o garfo e deixou a bicicleta do mesmo jeito que estava antes do acidente. 


Já era início de noite quando saímos felizes e agradecidos da casa da tia Zulma e do tio Florindo. Sentei na garupa da bicicleta, a lua cheia iluminava com uma luz prateada os campos e a estrada da nossa linda Canela Grande. Durante o caminho de volta pra casa, permaneci o tempo todo com o dedinho apontado para o céu, contando estrelas, acumulando verrugas e histórias para contar.



MACIEL BROGNOLI
Crônicas e contos
Maciel Brognoli é guarda municipal de Tubarão, graduado em Administração Pública, especialista em Segurança Pública e Gestão de Trânsito e escritor. Ocupa a cadeira n° 27 da Academia Tubaronense de Letras (Acatul) e escreveu quatro livros.
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